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Espetáculo de dança celebra ancestralidade feminina em sinfonia de sapateado no Teatro ICA de Cajazeiras

Com direção de Vinícuis Oliveira e performance de Valéria Pinheiro, TOURO {BULL} é uma peça coreográfica da Cia. Vatá (companhia de brincantes Valéria Pinheiro)

Por Show Diário

10/04/2024 às 11h12 • atualizado em 10/04/2024 às 11h29

Valéria Pinheiro em TOURO [BULL] (Crédito: Divulgação//Marcelo Paes de Carvalho)

TOURO{Bull}, com apresentação marcada em Cajazeiras para o dia 16 de abril no Teatro ICA (Teatro Iracles Pires), é um espetáculo que aborda o tema da ancestralidade feminina a partir do ponto de vista da cultura caririense. O Cariri fica no coração do nordeste brasileiro, considerado um oásis por correr água o ano inteiro que desce a Chapadado Araripe, mas que ainda assim sofre com a seca, conhecido por ser uma encruzilhada de materialidades e imaterialidades onde são trocados saberes, magias e mercadorias e foram construídas tradições que, para o bem e para o mal do povo nordestino, moldaram seus corpos e comportamentos, e revelam a beleza áspera humana de cada mulher e homem que nasce e vive nesta região.

A partir das memórias da dançarina e coreógrafa Valéria Pinheiro, que nasceu e se criou naquela região, o espetáculo traz alguns dos arquétipos do imaginário nordestino em formato de uma sinfonia de sapateado, sapateios identitários brasileiros: Brinquedos e folguedos do Cariri têm passos ritmados e batidas de pé. Valéria, como brincante destes folguedos, incorporou à sua arte algumas técnicas do sapateado e o resultado são ritmos e passos autênticos.

O principal elemento cênico é um carro de boi, uma carroça com duas rodas grandes, sustentada e puxada por muletas. Sim, Valéria hoje é uma mulher com prótese total de quadril e o elemento carroça traz referências de sua vida e dialoga com essa ancestralidade. Durante dois séculos o carro de boi foi o principal meio de comunicação e transporte do sertão nordestino para o mundo. O que tivesse que sair ou chegar vinha por mulas, cavalos ou carro de boi. O boi ou o touro, no sincretismo religioso brasileiro, está ligado à mitologia da orixá Iansã, deusa dos raios e das tempestades, orixá guerreira que partia para a guerra ao lado de Xangô: Arquétipo de muitas mulheres nordestinas que com essa força e muita maestria criam as condições e trilhas para sustentar sua família.

Um território, muitas dores, um corpo cibernético, uma dança que insiste em reiniciar, um endereço fixo e várias histórias vestidas de sonhos, ou seriam dores? Serão alegrias? O acúmulo de perdas e sonhos, desenfreados, na mente e no coração. No encontro apaixonado com algumas referências, sobretudo mulheres e em especial mulheres do sertão nordestino, surge o interesse pela ancestralidade e sua forma feminina, como forma de andar e como modo de existir. Que corpo é capaz de suportar tanta dor e ainda assim seguir? Um corpo-labirinto, capaz de habitar com seus medos, de cantar para eles, de colocar-se diante do abismo.

Hoje um corpo cibernético, que feito TOURO, insiste em abrir espaço, quer dançar. Eis aqui uma mulher que refaz suas trilhas e que segue tatuada de cicatrizes. Um corpo fragmentado e cheio de dores, um corpo que demarca e sedimenta todos as trajetórias. Um corpo que parece pedir para parar, mas, ainda assim, um corpo que insiste em dançar: São 63 anos e trilhas vestidas de cicatrizes e memória…

Valéria Pinheiro em TOURO [BULL] (Crédito: Divulgação//Marcelo Paes de Carvalho)

O principal símbolo do espetáculo é o Touro, que traz todo um significado: Os tambores são a conexão com o sagrado. Em Touro o tambor é o elo entre o céu e a terra, o divino e o profanos, é o elemento da celebração da contemplação, ao mesmo tempo é o que faz descobrir o mundo, é o elemento de comunicação com o mundo. A personagem descobre o tambor e o mundo se ilumina, ao mesmo tempo que ao tocá-lo entra em contato com sua ancestralidade, com a memória simbólica que a faz encontrar outros caminhos. Tecido vermelho é um elemento simbólico do espetáculo que inicialmente está ligado diretamente à imagem sagrada da orixá Iansã, é a saia de Iansã. E ao longo da narrativa ganha outros significados, a placenta por onde o toura nasce, a terra fértil onde se germinam sementes, linha do destino e da caminhada individual. A vagina, a terra a menstruação, a vida.

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O carro de boi é o principal elemento cênico, uma carroça com duas rodas grandes, sustentada e puxada por um ou dois bois. Durante dois séculos, o carro de boi foi o principal meio de comunicação e transporte do sertão nordestino para o mundo. Para a personagem o carro de boi é o lugar do trabalho, do sustento, das tradições, mas ao mesmo tempo das amarras, do cotidiano, da materialidade da vida, enquanto os tambores se comunicam com o imaterial, o carro de boi se comunica com o material, com o que é essencial para a carne. Ao mesmo tempo que é um local das tradições e memórias, é o gerador de conflitos que delimita, prende, determina. O carro de boi ao mesmo tempo que é o meio de vida, se transforma na representação dos monstros da repressão e das amarras.

Os signos feitos a fogo, através de ferrete ou ferro em brasa, presentes no carro de boi, representam o ser marcado, calejado, oprimido, identificado, determinado. As marcas são as cicatrizes das pessoas que a personagem representa. O alçapão – a passagem , símbolo de transição portão ou porta, passar é romper os limites, mover o conhecido para o desconhecido.

Valéria Pinheiro em TOURO [BULL] (Crédito: Divulgação//Marcelo Paes de Carvalho)

As espadas são a representação das virtudes, o que dá um certo tom de nobreza, mesmo que não queiramos entrar por este lugar, mas representam as virtudes, as armas, as habilidades, os talentos inerentes à personagem, sua força e altivez. Está presente nas mãos da Iansã, divindade sagrada, e no momento de conflito é usada contra os monstros que representam a materialidade repressora. As espadas são as armas que dão as condições para a personagem lutar e se reerguer. Já quase no final se transforma em símbolo da força e da autonomia nas mãos de Touro quando se regenera e se levanta recuperada dos ferimentos de sua luta contra os monstros.

O arroz é a frutificação, representa a prosperidade e a abundância. O arroz em forma de alimento simboliza suas conquistas. O que a personagem semeia na terra é ao mesmo seu alimento e sua cria. Ao se alimentar e partilhar do arroz, a personagem está usufruindo de suas riquezas.

O Figurino – patchwork de tecidos e aviamentos– foi pensado para revelar uma mistura de referências simbólicas, armadura medieval de Joana D’Arc (virtude e coragem, honra e força), vermelho de Iansã, cores da cultura popular, que liga à ancestralidade, ao mesmo tempo que revela seus conflitos com a materialidade de uma tradição repressora (cintos ligados à castidade feminina, arreios que predem o feminino na sociedade machista). Os elementos da cozinha (pratos, talheres) formando o corpo sonoro da intérprete reforça a ideia do conflito, ferramentas domésticas ressignificadas para se comunicar com um novo mundo que se quer construir. Na maquiagem são usadas referências indígenas (vermelho do urucum), mouros (pontos pretos) e do candomblé para desmontar a diversidade do universo simbólico que faz parte do imaginário da mulher nordestina.

Muletas se tornaram escolha poética para reforçar a memória e a história da atriz dançarina coreógrafa que possui um corpo protético, que para se ressignificar, precisou implantar, tal qual uma ciborgue, ferramentas em seu corpo. E a mesma coisa acontece com a personagem, que se fere e se reconstrói. No palco, uma coreógrafa dança suas dores de mundo. Na platéia, sentimos juntos e mergulhamos nesse universo. Um espetáculo para assistir e guardar no coração.

Ficha Técnica:

  • Coreógrafa e dançarina: Valéria Pinheiro, coreógrafa e diretora artística da Cia. Vatá
  • Direção e dramaturgia: Vinícuis Oliveira
  • Direção de cenografia e figurinos: Rodrigo Frota
  • Direção musical: Wesley Santana

Serviço:

SHOW DIÁRIO

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