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Cantoras ainda enfrentam machismo e preconceito

Nomes como Marília Mendonça e Maiara e Maraisa dominam o sertanejo

Por Diário do Sertão

02/09/2017 às 05h01 • atualizado em 01/09/2017 às 18h28

Cantoras enfrentam preconceito por serem mulheres (foto: R7)

Tenho que agradecer muito a Deus e aproveitar cada segundo que eu tô nesse palco, sabe por quê? Não foi fácil, Brasil, não foi fácil estar nesse palco. A gente já ouviu demais que mulher não ia estar aqui em cima desse palco. Que os homens de chapéu que estão aí não iam abaixar para ouvir música de mulher nenhuma nesse Brasil. Que a mulherada não ia fazer a diferença no sertanejo. A gente quebrou obstáculos, quebramos regras, sabe por quê? Porque a gente acredita que o mundo, que o Brasil é para todos, o Brasil é justo. Barretos é justo! E não é à toa que nós estamos vivendo um momento histórico, Maraísa. A Festa das Patroas no palco principal do Barretão! É, mulherada, nós estamos podendo!”

Foi assim que a cantora sertaneja Maiara deu boas-vindas ao público de Barretos, no interior de São Paulo, no último dia 19 de agosto. Ao lado da irmã gêmea Maraísa, com quem compõe a dupla, a artista de 29 anos já havia cantado quatro músicas – entre elas seu maior hit, “10%” – quando parou pela primeira vez desde o começo do show, na principal arena da maior festa do peão da América Latina. Em êxtase, pulava e corria pelo palco, gesticulava e cumprimentava a companheira, com quem havia se apresentado horas antes no Criança Esperança, promovido pela Rede Globo no Rio de Janeiro.

“Que seja a primeira de muitas noites da mulherada aqui comandando essa festa”, continuou. “Embaixadora, embaixatriz, como é que fala esse trem aí? Vocês não acham que é a hora de uma mulher ser, não? Tem que ser a mulherada, não tem?”, perguntou à plateia, que respondeu com gritos de apoio. Todos os anos, a Festa do Peão de Barretos convida um cantor ou dupla de sucesso para ser seu representante oficial – desde 2010, quando a prática teve início, foram escolhidos apenas homens.

Antes de Maiara e Maraísa subirem ao palco, ele foi ocupado, durante uma hora e meia, por Marília Mendonça, de 22 anos, considerada outra representante da geração “feminejo”, o sertanejo protagonizado por mulheres. As três são responsáveis pelo projeto “Festa das Patroas”, que já levaram a várias cidades do Brasil. As irmãs baianas Simone e Simaria, autoras de sucessos como “Regime fechado” e “Quando o mel é bom”, completam o time de cantoras e duplas femininas no palco principal da festa.

A conquista de espaço privilegiado em um evento tão importante para o mundo sertanejo é reflexo da estrondosa visibilidade que o trabalho dessas artistas tem atingido nos últimos anos. Entre os cinco álbuns mais reproduzidos no Brasil em 2016 na plataforma de streaming Spotify, estão os CDs de Maiara e Maraísa e Marília Mendonça em terceiro e quarto lugares, respectivamente. O clipe do hit “50 reais”, da paranaense Naiara Azevedo, foi o terceiro vídeo musical mais visto no país no YouTube em 2016. No rádio, o sucesso se repete: no top 10 das músicas mais tocadas em estações AM e FM em 2016, segundo o Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), quatro são delas.

“Hoje em dia, a mulher gosta mais de escutar mulher do que homem. A gente se identifica muito com as letras e pelo fato de ser uma mulher cantando”, diz a analista de controle de qualidade Karla Girardi, de 27 anos, que estava na arena principal do rodeio na noite de 19 de agosto. “[Me identifico] com a parte da independência, porque hoje toda mulher tem a sua”, explica. Ela e mais três amigas saíram de Colina, cidade vizinha, para assistir à Festa das Patroas naquela noite de sábado.

As cantoras que estavam no palco em Barretos não são as primeiras mulheres a fazer sucesso no mundo sertanejo. Inezita Barroso e as Irmãs Galvão, dupla famosa ainda hoje como As Galvão, estão entre as mais conhecidas. A novidade está na postura assumida pela nova geração do feminejo, sublinhada até mesmo por cantoras jovens, como Paula Fernandes. Em entrevista recente, a mineira demarcou a distância entre o seu estilo e o das colegas que hoje dominam a cena. “Minha música é uma música de paixão, de sonho. Então não é sofrência, é pureza. Eu tenho esse perfil de pureza”, afirmou.

Thiago Soares, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e coordenador do Grupo de Pesquisa em Mídia, Entretenimento e Cultura Pop (Grupop), também vê essa diferença. “O que acontece com as cantoras de agora é que colocam um tipo de discurso musical que parte para o enfrentamento”, diz. E explica: “Por que, por exemplo, uma música como ‘Alô porteiro‘, de Marília Mendonça, ou as de Maiara e Maraísa falando de suas noitadas de amor causam estranhamento? Porque, se a gente pega Roberta Miranda ou Paula Fernandes, ainda havia ali um discurso muito colado no ideal patriarcal, que colocava o homem, de alguma forma, num lugar de poder”, analisa.

Algumas das mulheres que hoje fazem sucesso com o microfone nas mãos já são velhas conhecidas do mercado sertanejo. Atuavam nos bastidores, escrevendo as letras interpretadas por nomes masculinos consagrados no meio. Composições de Marília Mendonça e Maraísa já ganharam vida nas vozes de Henrique e Juliano – “Até você voltar” e “A flor e o beija-flor”, na qual a primeira faz participação especial; e “Cuida bem dela”, de autoria da segunda – e Jorge e Mateus (a dupla sertaneja mais importante da atualidade no Brasil) – “Calma”, de Marília, e “Prisão sem grade”, de Maraísa.

© Globo/Reinaldo Marques

Simone e Simaria, conhecidas pelos fãs como “Coleguinhas”, também trabalharam à sombra de homens antes de assumirem o comando do show: até 2007, foram backing vocals do cantor de forró Frank Aguiar. O protagonismo veio depois do retorno ao Nordeste natal, quando se tornaram vocalistas da banda Forró do Muído. Só em 2012, já adotando o sertanejo como estilo principal, viraram a atração principal.

Com Naiara Azevedo, tudo aconteceu um pouco diferente. Ela canta desde criança, mas era desconhecida do público até 2011. O hit daquele ano era a música “Sou Foda”, originalmente um funk transformado em sertanejo pela dupla Carlos e Jader, com versos de exaltação à masculinidade – “Sou foda/ Na cama eu te esculacho/ Na sala ou no quarto/ No beco ou no carro”. Em um vídeo amador divulgado no YouTube, ela respondeu com a paródia: “Coitado, se acha muito macho/ Sou eu quem te esculacho/ Te faço de capacho”. A versão feminina de “Sou foda” fez tanto sucesso que Naiara repetiu a dose com a música “Não tô valendo nada”, de Henrique e Juliano. A essa altura, ela já utilizava o slogan “Naiara Azevedo: defendendo a mulherada”.

Além de retratar em suas letras figuras femininas que desempenham papéis socialmente ligados à masculinidade, o feminejo desafia os ideais masculinos de beleza feminina. Essa nova geração de cantoras e duplas não faz questão de exibir corpos magros ou sarados – o que pode até causar estranhamento em um mercado dominado por jovens magras, mas gera um sentimento de empatia em outras mulheres.

“A Marília Mendonça é meu espelho. Sou gordinha e ela trouxe uma coisa que ninguém tinha trazido antes: se assume e não está nem aí. Geralmente, elas [artistas] entram para o mundo da música e emagrecem”, diz a professora Tamiris de Freitas, de 27 anos, sobre gostar de Marília Mendonça. Ela foi com seus amigos à Festa do Peão para curtir o show da cantora. “É com isso que me identifico, sou assim, sou de bem com a vida e pronto, acabou.”

Esse conjunto de elementos acabou funcionando como estratégia para ampliar o público do sertanejo, tornando esse universo, tão marcadamente masculino, mais atraente para grupos dele antes distantes. O professor Thiago Soares conta que vê isso acontecer em sala de aula: “Dou aula [de jornalismo] na Universidade Federal de Pernambuco. Tradicionalmente, meus alunos gostam de um bom indie rock e normalmente negam um pouco essa coisa da cultura popular. Vejo minhas alunas, muitas delas feministas, parte de coletivos, que adoram Marília Mendonça e cantam suas músicas. Através de seu discurso, acho que ela conseguiu tirar o sertanejo um pouco dos nichos no qual sempre foi consumido.”

Em São Paulo, isso também é visível. Desde junho, o coletivo “Meu cupido é gari“, cujo nome é inspirado na canção homônima de Marília Mendonça, já realizou duas festas com repertório focado no feminejo e planeja uma terceira para setembro. O grupo é formado por quatro sócios, três deles responsáveis por blocos de carnaval e outras festas da noite paulistana, algumas ligadas ao público LGBT, que definitivamente não é consumidor habitual de música sertaneja. A DJ Renata Corr, uma das organizadoras, conta que começou a sentir a demanda por um evento desse gênero quando os frequentadores de sua festa passaram a pedir músicas das cantoras e duplas femininas. “Acho que esse movimento se deve a um conjunto de coisas: por serem mulheres e terem tomado um espaço antes dominado por homens, serem cativantes e cantarem bem. Tudo isso aproximou o público LGBT [do sertanejo]”, avalia.

R7

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